Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
DITADURA JUDICIAL E IPTU
Pressão contra Haddad envolve soberania popular e democracia
Muitas
vezes, os golpes contra a democracia são movimentos óbvios e visíveis,
ilustrados por tanques de guerra, baionetas e generais. Vivemos tempos
em que a consciência democrática dos povos rejeita ataques frontais a
seus direitos e é capaz de sair às ruas para defender conquistas
históricas e permanentes.
São tempos de
judicialização, quando forças conservadoras, sem voto, batem a porta dos
tribunais para ameaçar a soberania popular, ignoram a vontade do
cidadão e procuram resolver, às suas costas, o que é melhor para um
país, um Estado, uma cidade.
A Constituição diz, no
artigo 1, que todos os poderes emanam do povo, e são exercidos através
de representantes eleitos – ou diretamente, na forma da lei.
Penso nisso diante da mais
recente cena do Superior Tribunal Federal. O prefeito de São Paulo,
Fernando Haddad, eleito de forma límpida e clara em 2012, foi obrigado a
apresentar recurso para Joaquim Barbosa anular uma liminar da Justiça
de São Paulo que proíbe a cobrança do aumento no IPTU, principal fonte
de recursos da prefeitura da maior cidade do país.
Vamos combinar: já é absurdo
que um prefeito que recebeu 55% dos votos no segundo turno seja
obrigado a fazer uma caravana até Brasília para fazer valer seu direito
de definir como pretende governar São Paulo.
É ainda mais absurdo, no entanto, que a palavra final fique com a Justiça.
Não há nenhum aspecto, neste
debate, que envolva matéria constitucional. Do ponto de vista
eleitoral, Haddad pode estar até ajudando a colocar uma pedra na
reeleição de Dilma Rousseff, como acreditam tantos petistas de olho em
2014, mas este é um debate entre o prefeito e seu partido.
A questão aqui envolve
princípios e nunca é demais lembrar a visão que explica que os bons
princípios são aqueles que podem ser defendidos inclusive quando
contrariam nossos interesses.
O IPTU é um imposto
tradicional das cidades brasileiras, com alíquotas que sobem e descem de
acordo com as prioridades de cada prefeito. Minha opinião é que o STF
tem obrigação de devolver o assunto a quem foi eleito para isso – o
prefeito e a Câmara de Vereadores, que já tomou posição a favor do
aumento, também.
Essa situação elimina o mais
maroto dos argumentos favoráveis a judicialização, aquele que admite
que é um caminho errado, mas diz que a Justiça só entra em cena por
causa da omissão dos demais poderes.
Qualquer passo em falso, nessa matéria, representará um ataque à vontade popular.
O recurso alternativo, de
cozinhar o assunto numa sopa de oportunidades durante meses sem fim,
será, na prática, uma forma de atender a pressão contra o aumento do
IPTU, privando a cidade de recursos que o prefeito julga serem
necessários – foi ele o escolhido por 3,3 milhões de eleitores para
resolver isso.
Ao dar a
liminar contra o aumento, o Tribunal de Justiça de São Paulo alegou,
como causa principal, a “falta de debate público” sobre o tema.
Desculpe mas pensei que
isso tinha ocorrido na eleição. Quer dizer que tivemos o horário
político, os debates eleitorais em todos os canais de TV e é possível
alegar que “faltou debate?”
Depois de protestos de
junho, onde a questão do transporte coletivo teve um destaque óbvio,
será razoável bloquear receitas para investimentos que, por caminhos
diversos, irão enfrentar este problema?
Nem nos tempos de George
Bush, pai, aquele presidente dos EUA que mandou a população fixar o olho
em seu lábios enquanto ele dizia vagarosamente não-haverá-mais-impostos
durante a campanha, para mudar de ideia depois da posse na Casa Branca
ouviu-se um argumento desses. Tão subjetivo, digamos assim.
O debate sobre impostos
maiores e menores faz parte do cotidiano político das democracias e,
salvo nas ditaduras, sempre foi resolvido pelo eleitor. Fernando
Henrique Cardoso fez a carga tributária subir de 24% do PIB para 35%.
Foi assim que seu governo conseguiu manter o célebre equilíbrio fiscal.
O Supremo não deu um pio, nem poderia nem deveria.
Dilma Rousseff desonerou
vários setores da economia. Nos Estados municípios, governadores e
prefeitos criam e eliminam incentivos fiscais. É possível debater a
oportunidade de cada uma dessas medidas. Mas seria absurdo questionar o
direito de autoridades eleitas de resolver uma questão fundamental do
funcionamento do Estado.
O Estado do bem-estar europeu
não foi construído com recursos espirituais, mas com impostos
retirados dos mais ricos – inclusive sobre grandes fortunas – para
beneficiar os mais pobres. Imagine se eles fossem bater as portas dos
tribunais para revogar as decisões? Como mostra o grande pensador Tony
Judt, a Europa estaria nos braços negros do fascismo até hoje.
A contra revolução
conservadora patrocinada por Ronald Reagan, nos EUA, tinha como base o
corte de impostos da classe média alta e dos ricos. Ninguém foi à Corte
Suprema por causa disso. Podemos até não gostar, mas era o voto que
naquele momento dava autoridade a Reagan. O mesmo aconteceu na
Inglaterra, nos anos de Margareth Thatcher. A população chegou a fazer
uma revolta popular quando ela criou uma taxa que tungava fundo no
orçamento da população dos bairros mais pobres – a palavra final coube
ao eleitor.
A questão do
IPTU paulistano foi levada ao Supremo por esses caminhos que sempre são
percorridos por quem não tem respaldo na vontade popular. Não foi por
acaso de Haddad mencionou a eliminação da CPMF, ocorrida no segundo
mandato do governo Lula.
Naquele momento, a mesma
FIESP já presidida pelo mesmo Paulo Skaf participou da operação que
acabou com a CPMF através do Congresso. A ação nada teve de democrática.
Os deputados tinham medo de não conseguir reeleger-se no pleito
seguinte depois de apoiar uma medida tão perniciosa para a população
mais pobre e queriam dinheiro para mudar de lado. Foi um escândalo,
conforme apurou a Polícia Federal na Operação Castelo de Areia.
Com base na investigação
do caixa 2 de uma das maiores empreiteiras do país, descobriu-se o
pagamento de propinas imensas a uma larga fatia do Congresso. Feito o
serviço com os parlamentares, chegou a hora de pedir ajuda a Justiça
para se impedir a punição dos responsáveis.
Havia montanhas de diálogos
gravados, comprometedores e vergonhosos. Mas as principais peças de
acusação foram anuladas, pois haviam sido obtidas sem autorização
judicial. Resultado: o STF anulou as provas e ficou tudo por isso mesmo.
Está certo? Está, por mais que seja chato admitir isso. A democracia
tem seus rituais, e um deles informa que os direitos dos cidadãos, mesmo
aqueles acusados de crimes gravíssimos, devem ser respeitados.
E é em nome dos mesmos
rituais que ( putz! ) ajudaram a salvar até aqueles tubarões que
derrubaram a CPMF, mas em função de uma causa muito melhor, que se deve
devolver as prerrogativas democráticas a quem tem o direito de falar
pelo povo.
A alternativa é a
ditadura judicial. Este é um sistema que até pode conviver com algumas
franquias democráticas mas, toda vez em que os ricos e poderosos se
consideram atingidos em seus direitos, oferece acesso especial e
personalizado para revogar medidas que não são de seu interesse.
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