Política
Comunicação
O celular engole a tevê
O governo leiloa para as teles uma frequência antes exclusiva das emissoras de televisão
Marcelo Camargo / Agência Brasil
Dizem que agosto é o mês do
desgosto. Para a Rede Globo, foi. No dia 22, a principal emissora de
tevê aberta do País amargou um vexame. O Jornal Nacional
e suas novelas tiveram a pior audiência da história em São Paulo. Duas
semanas antes, a RBS, sua maior afiliada e retransmissora para gaúchos e
catarinenses, anunciara demissões em massa, sinal de que os negócios
não vão bem. O presidente do grupo, Eduardo Sirotsky Melzer, alegou
“transformações radicais e a velocidade impressionante pelas quais a
indústria da comunicação tem passado”, em uma carta dirigida aos
funcionários.
A razão da degola explica também o fiasco de público de
algumas estrelas da programação global. A disseminação da tecnologia e
da internet desnorteou os canais de televisão. Um pesquisa do Ibope
descobriu que as pessoas que usam a web passam mais tempo a navegar, do
que a plateia que assiste tevê gasta à frente da telinha. E a competição
vai se acirrar. Vem aí um plano parido a fórceps pelo governo,
bilionário e motivo de uma guerra jamais vista entre tevês e companhias
telefônicas, cuja meta é difundir o uso de uma internet veloz via
celulares.
Depois de dois anos e meio de estudos e negociações, a
Agência Nacional de Telecomunicações vai leiloar, em 30 de setembro, uma
faixa de frequência eletromagnética de 700 MHz. É uma das mais
“nobres”, como se diz, sem maiores esclarecimentos, por permitir acesso a
locais distantes como a Amazônia e driblar barreiras físicas em metrôs e
outros ambientes fechados. Hoje é utilizada pelas emissoras de tevê.
Com o leilão, passará às operadoras de telefonia por um período de 15
anos.
Será o maior leilão no setor de
telecomunicações desde a privatização da Telebras, em 1998. Pelo edital
recém-publicado, os compradores gastarão, no mínimo, 11,3 bilhões de
reais, metade do obtido com a venda da estatal na gestão Fernando
Henrique. Entrarão nos cofres públicos ao menos 7,7 bilhões de reais. A
operação será financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social, o BNDES. Portanto, em um primeiro momento será verba
pública a ingressar no Tesouro Nacional. Os 3,6 bilhões restantes irão
para as emissoras como uma espécie de indenização por desapropriação.
A troca de controle tem
uma exigência. As teles deverão utilizar a faixa para fornecer aos
celulares uma conexão de quarta geração com a web. A comercialização da
conexão do tipo 4G começou em 2013 no Brasil, mas ainda engatinha.
Estima-se um total de 3,5 milhões de usuários, em cem municípios. A
vantagem diante da geração anterior é a rapidez no fluxo de dados. O 4G
roda de 4 a 100 vezes mais depressa e permite assistir a vídeos sem
travar. Pode-se acompanhar a Globo ao vivo, ou acompanhar em tempo real
uma transmissão de produtores independentes dirigida a usuários de
celular. Concorrência pura para os canais tradicionais. “A produção de
conteúdo vai aumentar. A ideia da tevê aberta como 'pauteira' nacional
já não é mais assim e será cada vez menos. A riqueza está nas redes”,
diz Sérgio Amadeu, sociólogo ex-presidente do Instituto Nacional de
Tecnologia da Informação.
A evolução tecnológica na última década já tinha diminuído as fronteiras entre televisão e telefonia. Nunca,
porém, os dois setores haviam batido de frente em uma disputa por um
mesmo bem (a faixa de frequência) como agora. Uma guerra em que cada
batalhão dispunha de um arsenal diferente. No caso das teles, o poder
econômico. Em 2013, elas faturaram 220 bilhões de reais, dez vezes acima
dos grupos de radiodifusão. Estes últimos contavam com poder político,
graças à capacidade de influenciar a opinião pública. As final, a força
da grana e a marcha irrefreável da tecnologia se impuseram no debate
sobre o leilão.
Derrotadas, as emissoras estão
apreensivas e ameaçaram melar o leilão. No dia da publicação do edital
de licitação, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
reagiu com firmeza. A Abert considerou “insuficiente” a indenização de
3,6 bilhões de reais e quer 5 bilhões, segundo se comenta nos
bastidores. A instituição promete tomar “as medidas cabíveis”, conforme o
presidente da entidade, Daniel Slaviero, disse ao ministro das
Comunicações, Paulo Bernardo, em uma feira setorial na segunda-feira 25,
em São Paulo.
A transferência da faixa de frequência
para as telefônicas deixará ao relento 400 radiodifusores com operações
em 1.096 municípios. Em número de canais, a lista chega a mil. Fazem
transmissões em UHF e podem ser sintonizados entre os canais 52 e 69 nos
televisores com antena comum. Embora os 700 MHz não sejam a principal
frequência na transmissão das grandes emissoras, estas também sentirão o
baque. A Globo terá problemas em Jundiaí, no interior paulista, e em
Lagoa Santa, no interior mineiro, por exemplo. A Record sofrerá em duas
capitais (Recife e Belém). A Bandeirantes, no interior de São Paulo. O
SBT, na cidade histórica de Petrópolis, no Rio. As maiores vítimas,
contudo, serão os canais públicos, como TV Brasil, TV Senado e TV da
Câmara dos Deputados.
A preocupação das grandes
emissoras com o leilão ultrapassa o impacto sobre os canais atingidos.
Elas temem pelo futuro do negócio. As empresas de tevê aberta no Brasil
vivem à base de audiências elevadas, argumento para cobrarem caro dos
anunciantes. A receita gorda permite investir grandes somas na produção
de novelas, Faustões e jornalismo. A competição da internet quebra a
engrenagem, ao reduzir a audiência. Cedo ou tarde, haverá piora ulterior
de qualidade, já muito baixa, compressão de salários mais baixos e queda dos lucros. E redução do poder político.
Na luta para sobreviver, mas sem expor
claramente o motivo do medo, as empresas de radiodifusão sacaram um
argumento passível de ser definido como bonitinho para pressionar contra
o leilão. Estaria em risco a liberdade de expressão, diziam nos
bastidores e, discretamente, em público. Certo é que a tevê aberta é
gratuita, enquanto celular e internet móvel custam caro no Brasil.
Se não foi capaz
de preservar a faixa de frequência de 700 MHz sob o comando do setor, o
lobby serviu ao menos para arrancar uma bela concessão oficial em outro
assunto igualmente preocupante, o da tevê digital, instituída no País
em 2006. Trata-se de um sinal de melhor qualidade, impossível de captar
com antenas comuns e televisores antigos. É preciso ter tevê a cabo, um
aparelho moderno ou um conversor de sinal. Na época, fixou-se um prazo
de dez anos para a digitalização total no País. Na reta final, o cenário
é desolador, devido a essa situação específica e a inumeráveis outros
motivos. Dos 11 mil canais existentes, só 4 mil estão preparados para
esse tipo de transmissão, segundo dados do Ministério das Comunicações.
Em São Paulo, somente um em cada três domicílios está apto a receber o
sinal, segundo um levantamento do Ibope. Se o prazo fosse seguido,
possivelmente ocorreria um caos. Muita gente ficaria sem a sua
novelinha.
Paulo Bernardo foi compreensivo.
Em fevereiro de 2013, determinou à Anatel a vinculação do leilão da
faixa de 700 MHz à digitalização das tevês. Cinco meses depois,
convenceu Dilma Rousseff a assinar um decreto para prorrogar a
obrigatoriedade da digitalização para dezembro de 2018. Ao atrelar tal
processo ao leilão, o ministro abriu o caminho para a indenização de 3,6
bilhões de reais não se limitar à desapropriação dos canais afetados.
Será usada também para comprar
conversores e doá-los aos 14 milhões de inscritos no Bolsa Família.
Base da audiência das tevês abertas, a população mais pobre é
proprietária da maior parte dos televisores e antenas antigos.
Outra parte da
indenização será endereçada à busca de soluções tecnológicas para um
problema potencial. Há risco de a faixa de 700 MHz, quando usada no
futuro pelas telefônicas, interferir no sinal dos canais abertos de
tevê. E vice-versa. Os dois setores contrataram seus testes. O
coordenado pela Anatel, na virada de 2013 para 2014, foi realizado na
cidade goiana de Pirenópolis, a 140 quilômetros de Brasília, com
equipamentos fornecidos pela Globo, a telefônica Oi, a fabricante
chinesa de celulares Huawei e a produtora americana de chips Qualcomm,
entre outros. Houve cenas de puro mambembe. O material chinês não
suportou a carga inicialmente, importações da Qualcomm ficaram retidas
na alfândega, cabos da Oi se romperam. O trabalho só terminou em abril,
bem além do previsto. Os resultados apontam para a possibilidade de
problemas de pequenas proporções, acredita a Anatel.
Grandes favorecidas, as teles não
demonstram muito entusiasmo pelo leilão. Nos bastidores, afirmam que o
momento não é o melhor para o governo forçar um desembolso de 11,3
bilhões de reais. Elas não teriam fôlego financeiro suficiente, uma
situação que a entrada do BNDES no circuito ajuda a mudar. A
Telefônica/Vivo, por exemplo, remete parte dos lucros à matriz na
Espanha desde a crise global de 2008. Gerida por brasileiros, a Oi vive
eternos dramas internos. Por tudo isso, as teles torceram para o
Tribunal de Contas da União barrar o leilão. Chegaram a festejar
discretamente, quando houve uma suspensão provisória no início de
agosto. Duas semanas depois, o TCU deu sinal verde à Anatel.
A TIM foi única fora de sintonia.
Em abril, antes da indicação da data definitiva do leilão, o presidente
da empresa, Rodrigo Abreu, cobrou da agência a antecipação do uso da
faixa de 700 MHz. A frequência será comprada
agora, mas só estará disponível para as teles entre 2017 e 2018, no fim
do processo de digitalização das emissoras de tevê. Após a definição do
leilão, a TIM, isoladamente, declarou seu interesse. Mas parece existir
espaço para todos. A Anatel preparou a venda de quatro lotes de alcance
nacional. Em tese, um para cada operadora de telefonia móvel já atuante
no País (TIM, Vivo, Claro e Oi). Não se pode descartar o surgimento de
uma surpresa estrangeira.
Apesar do charminho
das teles, o governo não arredou pé do patrocínio do leilão este ano.
Sem os quase 8 bilhões de reais de arrecadação adicional, o Tesouro
Nacional teria muita dificuldade para fechar as contas públicas este
ano, como o secretário do Tesouro, Arno Augustin, reconheceu
publicamente no fim de julho. Além disso, a disseminação da internet de
alta velocidade, do tipo banda larga, é uma promessa da campanha
reeleitoral de Dilma Rousseff verbalizada desde o primeiro dia da
eleição. Em um vídeo divulgado em 6 de julho em seu site de campanha, a
petista prometeu lançar um programa para universalizar uma internet
potente e barata.
Queixas à parte, apoderar-se da nova
frequência é uma necessidade para as teles. As previsões de demanda dos
brasileiros por internet são incríveis. Calcula-se que o tráfego de
dados aumentará dez vezes até 2017, devido ao consumo de vídeo em
celulares. A Copa deu uma amostra do apetite. Na primeira rodada, houve
7,6 milhões de comunicações de dados dentro dos estádios. É como se cada
torcedor tivesse enviado 10 fotos. Na partida final, o fluxo
correspondeu a 35 fotos per capita. Até 2012, quando a Anatel leiloou a
primeira frequência para uso da internet móvel 4G por 2,9 bilhões de
reais, não havia nada parecido.
O mercado de aparelhos de celular também
virou do avesso com o crescimento da procura por internet móvel, puxado
pela menos veloz terceira geração. Os chamados smartphones tomaram conta
das vendas desde o primeiro semestre de 2013. Três em cada quatro
celulares comercializados são desse tipo. O imposto cobrado pelo governo
sobre o produto foi zerado no ano passado, benesse que acaba de ser
renovada até dezembro de 2018.
Mas há também uma má notícia para os
cidadãos. Ex-presidente da Telebrás e um dos idealizadores do Plano
Nacional de Banda Larga no fim do governo Lula, Rogério Santanna diz que
a banda larga brasileira não merece esse nome, por ser muito lenta na
comparação internacional. Além disso, diz ele, os preços cobrados pelo
serviço em aparelhos celulares são “estapafúrdios”. Mais: ao reforçar o
estímulo à internet móvel do tipo 4G, com efeitos que só serão sentidos
em 2017 ou 2018, sem que as operadoras tenham cumprido as metas na de
3G, a Anatel deixará os usuários numa enrascada. “Estamos no pior dos
mundos. Não temos 3G para todos e estamos chegando atrasados ao 4G.”
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